terça-feira, 26 de outubro de 2010

No que consiste a “inconstitucionalidade progressiva”? Ela já foi utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil?

"Inconstitucionalidade progressiva", que pode ser denominada também por "inconstitucionalidade temporária" ou "norma ainda constitucional", consiste na declaração de constitucionalidade de uma norma que está “em trânsito, progressivamente, para a inconstitucionalidade”[1]. Ou seja, a norma está em um estágio transitório intermediário, situado "entre os estados de plena constitucionalidade e de absoluta inconstitucionalidade"[2].
Utilizando a técnica da inconstitucionalidade progressiva o STF mantém no ordenamento jurídico uma norma que, apesar de não inteiramente compatível com a constituição, tem sua manutenção justificada por circunstâncias fáticas, como no caso da declaração de constitucionalidade do art. 68 do CPP que prevê a legitimidade ativa do Ministério Público na defesa dos necessitados (tarefa atribuída à Defensoria Pública pela Constituição da República). No aresto abaixo ficou claro que o Tribunal considera que essa norma permanece constitucional apenas enquanto as Defensorias Públicas não forem implementadas, se tornando gradativamente inconstitucional com o processo de implantação dessa instituição:

"LEGITIMIDADE. AÇÃO ‘EX DELICTO’. MINISTÉRIO PÚBLICO. DEFENSORIA PÚBLICA. ARTIGO 68 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CARTA DA REPÚBLICA DE 1988. A teor do disposto no artigo 134 da Constituição Federal, cabe à defensoria pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da Carta, estando restrita a atuação do Ministério Público, no campo dos interesses sociais e individuais, àqueles indisponíveis (parte final do artigo 127 da Constituição Federal). INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA. VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE. ASSITÊNCIA JURÍDICIA E JUDICIÁRIA DOS NECESSITADOS. SUBSISTÊNCIA TEMPORÁRIA DA LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ao Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito, cumpre viabilizar o respectivo exercício. Enquanto não criada por lei, organizada – e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação – a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista. Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento" (RE 135328/SP, v.u., Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 20/04/2001, grifei).

A utilização dessa técnica é necessária devido à impossibilidade de o Estado implementar alguns preceitos da ordem constitucional de forma instantânea, principalmente quando para essa implantação são necessárias alterações da realidade fática. No caso da Defensoria Pública, ela somente pode se considerar implantada quando estiver organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da constituição e da lei complementar que a organiza. Enquanto isso, para não deixar os necessitados sem auxílio jurídico do Estado, permanece legitimada outra instituição, o Ministério Público.
A crítica contrária à possibilidade de aplicação da técnica da inconstitucionalidade progressiva argumenta que um dispositivo não poderia ser constitucional agora e inconstitucional amanhã. Não existe essa situação de transição, leis são ou não constitucionais desde seu nascedouro.
Além do caso em comento, a inconstitucionalidade progressiva tem sido utilizada pelo Supremo Tribunal Federal ao proferir outras decisões, como demonstra os seguintes julgamentos: RE 196.857-SP (AgRg), Rel. Min. Ellen Gracie; RE 208.798-SP, Rel. Min. Sydney Sanches; RE 213.514-SP, Rel. Min. Moreira Alves; RE 229.810-SP, Rel. Min. Néri da Silveira e; RE 295.740-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
O Promotor de Justiça em Mato Grosso, Dr. Renee do Ó Souza, e a Bacharel em direito, Alessandra Varrone de Almeida Prado Souza concluem no artigo “da inconstitucionalidade progressiva e sua aplicação abstrata” que:

“Tais raciocínios, ao menos teoricamente, evitariam que uma norma fosse tida como constitucional a pretexto de que no futuro, mediante ação dos Estados (no caso a instituição da defensoria) se torne inconstitucional, o que fomentaria a desídia dos Estados que prorrogam suas responsabilidades e não têm suas omissões devidamente punidas ou rechaçadas.”

A solução da inconstitucionalidade progressiva é eminentemente política. No caso aqui discutido o Tribunal pesou (1) o interesse em manter a assistência jurídica dos necessitados e (2) o flagrante desrespeito à distribuição de funções entre as instituições determinada pela Constituição. O problema é que dessa forma o Judiciário se mantém inerte, à espera da boa vontade dos Estados em instituir a Defensoria Pública, desprestigiando a prevalência da Constituição Federal.

Referência bibliográfica:
SOUZA, Renee do Ó; SOUZA, Alessandra Varrone de Almeida Prado. Da inconstitucionalidade progressiva e sua aplicação abstrata. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 755, 29 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7094>. Acesso em: 22 jun. 2010.
LENZA, Pedro. “Direito Constitucional Esquematizado”. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira, "Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos". São Paulo: Saraiva, 1990. (dissertação de Mestrado apresentada à UnB em 1987).


[1] LENZA, Pedro. “Direito Constitucional Esquematizado”, p. 211, 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira, "Controle de Constitucionalidade", p. 21, São Paulo: Saraiva, 1990.

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